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domingo, 25 de outubro de 2009

Não

Eu, que havia lavado a alma, cheguei em casa e lavei os pés. Eram sujos de saudade. As pernas doíam como se estivessem em maratona. Maratona de amor. E o amor também cansa.

Aproveitei pra lavar as mãos de tudo o que não foi dito. Não importa. Talvez, a importância tenha vida só no meu quarto. Na minha cama. Na minha boca.

Meu útero reclama. Meu dente dói, como se implorasse a salvação. Então é isso: absolvo todo o meu corpo da tua espera. Ironizo tudo o que não posso significar. Falta você, mas o que não pode mais faltar sou eu.

O resto é suportável. O resto, é a vida. E a vida é possível. Cheia de remendos e confusões. Cheia de idiomas, fantasias e idiossincrasias. Ainda sou eu. Ainda é você.

Mas, dane-se. De um dane-se bem danado, de um amor bem amado e de um não bem democrático.

Não. Não intrínseco. De madrugada, sem a lucidez do Sol.

Não.
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Por Não Estarem Distraídos
(Clarice Lispector)

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.

Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.

Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.

No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.

Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.

Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

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