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domingo, 18 de abril de 2010

II

Ele sabia que era impossível. Mas a desejava em seus braços, mais uma vez. E era disso que eram feitos seus segredos: mais uma vez. Em anos, em vezes, em meses. Era impossível mas era doce esperá-la, ainda que não viesse, como na última semana quando de surpresa, a ausência. Arrumou a casa, preparou o jantar. Escolheu o vinho e cuidou para que as velas estivessem cada uma em seu lugar, como se orquestrasse estrelas em seu próprio céu. O céu que daria de presente à ela.

Enfim, abriu a porta e os lábios grossos num sorriso:

- Já faz um ano.
- Um pouco mais.
- Por que demorou tanto?
- É que me apaixonei...

Então a abraçou, como se pudesse perdoá-la por enamorar-se (ensandecida), entre perfumes e mentiras. E voltar.

- Está ainda mais bonita.
- E envelhecida.
- Prefiro assim.
- E eu prefiro você.

A noite era um vento que soprava alívio àqueles corpos queimados de saudade e exaltação. Era a saia do vento, rodando entre o céu e o mar. O amor cigano, o silêncio em festa. E tudo, finalmente, em seu devido lugar.

Ela acordou duas horas antes do despertador e nunca saberia se o alarme do relógio realmente a despertaria. Nunca saberia. Mas já não precisava de bússolas nem fuso-horário, nem números, nem palavras. Mais um beijo. Um banho onde percebeu cada detalhe do seu corpo (tão) explícito. O café-da-manhã que ele preparou enquanto cantarolava aquela febre de serem dois. Dois. Um no outro, mais uma vez (aquela). Tantos anos de espaços, encontros, silêncios. E ainda eram... dois.

Felizes, sorriram(-se). E não era amor. Era água na boca. Água de riacho nascente, inundando o mundo, matando a sede da terra, das flores, das almas sacrificadas nos desertos de concreto.

Ela voltou à sua cidade, suas paredes e confusões. E sempre que o vento brinca com seus cabelos, sorri. É ele, beijando suas memórias impossíveis...
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Eis a música cantarolada (na cozinha, no carro, e na minha cabeça o resto do dia)...

Verdade Chinesa
(Emílio Santiago)
Composição: Carlos Colla/Gilson

Era só isso
Que eu queria da vida
Uma cerveja
Uma ilusão atrevida
Que me dissesse
Uma verdade chinesa
Com uma intenção
De um beijo doce na boca...

A tarde cai
Noite levanta a magia
Quem sabe a gente
Vai se ver outro dia
Quem sabe o sonho
Vai ficar na conversa
Quem sabe até a vida
Pague essa promessa...

Muita coisa a gente faz
Seguindo o caminho
Que o mundo traçou
Seguindo a cartilha
Que alguém ensinou
Seguindo a receita
Da vida normal...

Mas o que é
Vida afinal?
Será que é fazer
O que o mestre mandou?
É comer o pão
Que o diabo amassou?
Perdendo da vida
O que tem de melhor...

Senta, se acomoda
À vontade, tá em casa
Toma um copo, dá um tempo
Que a tristeza vai passar
Deixa, prá amanhã
Tem muito tempo
O que vale
É o sentimento
E o amor que a gente
Tem no coração...
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PS (da série “desnecessários”): Meu pai já ouvia essa música desde a minha infância. Eu, pequena, nunca entendi o que o compositor queria dizer com “verdade chinesa”. Hoje, pequena ainda – com um pouco mais de açúcar e poesia, desconfio do fato de que na língua chinesa existem duas palavras p/ significar “verdade”. Zhen-shi e zhen-li. A primeira refere-se às verdades mais palpáveis, práticas, concretas. A segunda trata de uma verdade quase religiosa: eterna, absoluta.
Acho bonito isso... DUAS verdades. E ainda assim, tanta gente prefere mentir... será que é culpa da nossa “única” verdade ocidental?

E se podemos ser “dois”, por que não podem ser duas – as verdades?

Ai, também quero da vida um beijo doce e uma verdade chinesa. E vocês?