(...)

(...)

domingo, 2 de outubro de 2011

Tâmara seca

Naquela manhã, acordar foi como nascer sem pai ou mãe. Um susto. Foi como se, pela primeira vez seus quarenta e poucos anos fossem tão explícitos.

A vida tinha cheiro de café. Os filhos adolesciam insuportavelmente. Às vezes, já não lhe desejavam nem bom dia. O marido se quer lhe desejava. Entreolhavam-se através das frestas, portas semi-abertas, cortinas e memórias sutis. Como se houvesse um pacto de cordialidade morna. Um pacto de paz. Ocorreu-lhe que aquela paz nada tinha a ver com a paixão louca que arrebatara o casal vinte anos antes. Percebeu que agora o amava como a um filho... adolescente, também. Oferecia-lhe aquele perdão que só as mães são capazes e era esse o segredo que sustentava o casamento – especialmente nos dias em que a pedra era só uma pedra. Aqueles dias sem romance, sem poesia, nenhuma pequena tragédia familiar que exigisse dela a capa de super-matriarca a salvar o mundo.

Andou pela casa feito uma estranha. Feito um fantasma de si mesma. Reconhecendo em cada canto que nada ali precisava dela. Nada dependia dela para “ser”. A reforma acabara, o sonho construído... todos os detalhes arranjados com cuidado. Do jardim observou a fachada. A casa era grande, bonita. De uma harmonia que agora sufocava. Por um momento, duvidou que cruzaria novamente aquela porta. Duvidou que fizesse parte daquela felicidade mórbida.

Precisava entender. Precisava novamente caber em si ou explodir de vez... não suportaria represar aquelas inquietações nem mais um segundo.

Na garagem, o carro do marido com os vidros mais abertos que fechados pareciam-lhe sorrir. Um convite, um plano de fuga. Plano B. Mas faltava-lhe um roteiro. Faltava-lhe o ar.

Decidiu ir. À quitanda, à padaria, qualquer lugar. Mas, o que compraria se naquela casa nada faltava? Desesperadamente, nada faltava. Frutas, botões, antissépticos... tudo havia ali.

Tirou a chave do contato, com medo que o som do motor lhe desse alguma direção. Alguma irreversível. No retrovisor, sua vida. Aquele rosto pálido, cansado, sem cor. Trêmula, deixou que o controle e as chaves escorressem pelos dedos.

Buscou um resto de coordenação para alcançar a chave, embaixo do banco. Primeiro encontrou um celular – reconheceu que era do marido (aquele que ela já não reconhecia). Tateou mais alguns centímetros e no mesmo cantinho encontrou o chaveiro e... um batom.

Batom gasto, cor de tâmara. Marrom-avermelhado e levemente cintilante. Pensou em mordê-lo. Pensou em guardá-lo, ou deixá-lo cair novamente embaixo do banco. Mas era tarde para esquecê-lo.

No celular do marido, passeou pela agenda, pelos arquivos, mas não havia mensagens e até o histórico de ligações o danado havia apagado.

E ela, que é que faria do batom e da sua vida? Principalmente, que é que NÃO faria?

Resolveu ir além. Tentaria todos os nomes e todos os números desconhecidos daquela agenda, até que alguma coisa fizesse sentido. No mundo.

Em ordem alfabética, foi descartando algumas conhecidas... a tia, a amiga de infância, a secretária que intermediava alguns eventos importantes, a professora do filho. Mas ali mesmo, na letra “A”, um nome lhe chamou a atenção. Repetiu-o três vezes olhando fixamente o movimento que os lábios nervosos refletiam naquele retrovisor.

Não teria coragem de ligar para a fulana – senhorita “A”. Então, enviou-lhe uma mensagem. Que mal haveria de ter? A fulana pensaria mesmo que era seu marido:

“Oi. Perdeu um batom? Cor de tâmara. Achei no meu carro.”

Ao que Dona “A”, respondeu quase que instantaneamente: “Ainda bem que foi você que encontrou”.

Que espécie de resposta era aquela? Que direito fulana “A” tinha de ser tão... tão vaga? Era um desrespeito àquela angústia e por isso, insistiu:

“... é seu ou não?”

“Sim. Meus! Você e o batom”.

Devolveu o celular embaixo do banco. Largou a chave no contato. Antes que pudesse chorar, preencheu os lábios com uma forte camada daquele batom. Cor de tâmara. Desejou ser inteira uma tâmara suculenta. Cintilante.

Saiu a pé. Sem pressa. No bolso uma lágrima pra derramar depois. No outro, o batom.

_______________________________________________________
PS: É que essa história ficou martelando meus instintos antes mesmo de acontecer. Se é que aconteceu. Ficção ou auto-ficção?

Ah, cafuzice. Cafuzice pura.

Um comentário:

Nadine Granad disse...

Demorei, mas cheguei ;)

Impossível de não ler... sabes preender!!!

Fiquei com tantas dúvidas... será?! rs...


Beijos =)